Carta de Desamor

Meu caro irmão,

Sua excelência o alto maestro, nos condenou a um suplício incomensurável nesta data angelicana. Eu não suporto mais esta indigência permanente a que nos fez chegar esta missiva vinda dos altos púlpitos, lançando contra nós, meros oficiais das hostes aqui presentes, uma total ausência de guia espiritual e sublimação dos maiores valores de nossa congregação. É de lamentar o facto de nossa aldeia, e por conseguinte nosso rebanho, estar a ser evangelizado por entre os estilhaços de uma ideia infeliz, uma mera quimera de alto gabarito, sem mérito ou capacidade de inclusão prática entre nós. Estas novidades poderão alterar sem volta nossa direcção de fé.
Nossa missão nos faz mover montanhas, mas eu, de boa justiça o digo, não movia a ponta de um castiçal a este nosso irmão e mestre. Eu, se pudesse, e não interviesse de acordo com os princípios que nos regem claro está, estaria disposto a, digamos, castigá-lo por esta imposição danosa e conturbada. Um rumor que se faz sentir é o de que, se nosso maestro, alguma vez estivesse prestes a cometer uma loucura iria acender uma vela a Don Carlo por forma a aplacar a ira dos deuses, nossos criadores. Essa vela, iria representar todos os seus pecados cometidos e impregnar na sua brancura sua própria salvação existencial, porventura, uma vez que o nosso rei celestial atenderá tal pedido magistral, a consumação deste acto de salvação se daria a um formidável espectáculo de pura adoração e inocência. A chama da redenção se acenderia bravamente num louvor aos céus. Seria nunca trágico, mas sim, divino.
Mas eu, digo desde já caro irmão, que a acontecer tal evento, iria-se reflectir, sem sombra de dúvida, na organização do nosso templo. Se tal acontecer, esse facto iria decerto trazer um processo regenerativo ao qual todos nós, eu incluído, estaríamos obrigados moralmente a agir por forma a incutir de novo nas hostes um clima respeitador e de aceitação pela nova regência, que inevitavelmente, teria de passar seu legado ás futuras gerações e resolver assim os pecados da presente que, não o afirmo, mas assim o diz-se à porta fechada, são de tal ordem constrangedores que qualquer boa nova é enterrada num perpétuo clima de negrume e invalidez permanente de nossa cultura, tão amada, e tão querida.
Nossa amável, apaziguadora, e sempre fiel; Cultura. Cultura essa, irmão, a qual nós devemos proteger. Que deus seja nossa testemunha, e sua lei nosso guia. Assim o seja.

Subscrevo-me atentamente.

P. Abreu
3 de Outubro do Ano de Nossa Graça


Aproximo-me do tempo, ele insiste em ficar quieto, calado, sóbrio e insensível às passadas sérias que dou em sua direcção. Parado quase, não revela, situa-se. Ele resolve as situações de forma lacónica, tal como era de esperar, perdurando o bom senso de uns largos anos de maturação. Todas as razões são bem apresentadas e passadas a pente fino com muita atenção por sua parte. Envolve complexas redes de potencial e escolhe os passos mais importantes. Deixo ao seu critério, é mais fácil. Muito mais fácil. Ele conhece onde os estudos do presente se encontram numa encruzilhada respeitadora, relatando aos demais pretéritos as suas boas novas. Ele sabe; situando-se além das discórdias passageiras, desejando a todos sempre um ligeiro processo não apressado de glória. É necessário insistência por um compasso de espera, pois passados ligeiros solavancos, tudo o resto se demonstra solúvel, ambicionado, desejado. Se ele nos mostra a sua força nos ermos da razão inquieta à demanda do fácil, também demonstra sua eficácia nos pequenos momentos em que insiste em apresarmo-nos, em que revolta-se ao toque da campainha, em que discute com os ermos a sua lógica ensurdecera. Aqui as situações são relâmpago, aparecem num rasgo e voltam a ele num ápice de segundo. Nestas paragens ele fica subtilmente à escuta, parado por uns micro segundos de êxtase, contendo em si todas as possibilidades e venturas, nisto alcança a mestria, explode, envolve-se de novo na trama, de volta ao banal. Ciclo. Finito na sua plenitude.